COLUNA DO SERTANEJO
(Coletânea
de artigos próprios, de Jornais, Revistas, Publicações, livros etc.)
Ano 02 –
Salvador, 28 de abril de 2014.
“A vida não é a que a gente viveu, e sim a
que a gente recorda e como recorda para contá-la”.
Gabriel Garcia Marques
Texto de João Ubaldo Ribeiro
Como todos os anos, vim a Itaparica, para
passar meu aniversário em minha terra, na casa onde nasci. Casa de meu avô,
coronel Ubaldo Osório, que fez pouco mais na vida que amar e defender a ilha e
seu povo. De lá para cá, muito se tem perpetrado para destruí-los física ou
culturalmente e há nova tentativa em curso. Trata-se da anunciada construção de
uma ponte de Salvador para cá. Isso é qualificado, por seus idealizadores, de
progresso.
Conheço esse progresso. É o progresso que
acabou com o comércio local; que extinguiu os saveiros que faziam cabotagem no
Recôncavo; que ao fim dos saveiros juntou o desaparecimento dos marinheiros,
dos carpinas, dos fabricantes de velas e toda a economia em torno deles; que vem
transformando as cidades brasileiras, inclusive e marcadamente Salvador, em
agregados modernosos de condomínios e shoppings acuados pela violência
criminosa que se alastra por onde quer que estejamos enfurnados, ilhas das
quais só se sai de automóvel, entre avenidas áridas e desertas de gente.
Também conheço argumentos farisaicos dos
proponentes da ponte, ávidos sacerdotes de Mamon, autoungidos como empresários
socialmente responsáveis. Na verdade sabem os menos ingênuos, eles se baseiam
em premissas inaceitáveis, tais como uma visão imediatista, materialista e
comprometida irrestritamente não só com o capital especulativo, que já está
pondo as mangas de fora no Recôncavo, como aquele que investe aqui usando os
mesmos padrões aplicados em Pago-Pago ou na Jamaica. A cultura e a
especificidade locais são violentadas e prostituídas e o progresso chega
através abastardamento de toda a verdadeira riqueza das populações assim
atingidas.
As estatísticas são outro instrumento desses
filibusteiros do progresso que em nosso meio abundam, entre concorrências
públicas fajutas, superfaturamentos, jogadas imobiliárias e desvio de verbas.
Mas essas estatísticas, mesmo quando fiéis aos dados coligidos, também padecem
de pressupostos questionáveis. Trazem à mente o que alguém já disse sobre
estatística, definindo-a como a arte de torturar números até que eles confessem
qualquer coisa. E confessarão, é claro, pois Mamon é forte e sempre esteve na
crista da onda.
Mas não mostrarão que esse progresso é na
verdade uma face de nosso atraso. Atraso que transmutará Itaparica num ponto de
autopista, entre resorts, campos de golfe e condomínios de veranistas, uma
patética Miami de pobre. E que, em lugar de valorizar o nosso turismo,
padroniza-o e esteriliza-o, matando ao mesmo tempo, por economicamente
inviável, toda riqueza de nossa cultura e nossa História. Quem não é atrasado
sabe disso. Para não cometer esse tipo de atentado é que, em Paris, por
exemplo, não se permite a abertura de shoppings onde isso possa ferir o
comércio de rua tradicional. Tampouco, em Veneza, as gôndolas foram
substituídas por modernas lanchas. Num país não submetido a esse estupro
socioeconômico e cultural, os saveiros seriam subsidiados, as antigas
profissões, o artesanato e o pequeno comércio também. Exercendo a vocação
turística de toda a região, teríamos razão em nos mostrar com tanto orgulho
quanto um europeu se mostra a nós. Mas nosso destino parece ser acentuar
infinitamente a visão que enxerga em nós um país de drinques imitando jardins,
danças primitivas, pouca roupa e nativas fáceis.
Adeus, Itaparica do meu coração, adeus,
raízes que restarão somente num muro despencado ou outro, no gorgeio aflito de
um sabiá sobrevivente, no adro de alguma igrejinha venerável por milagre
preservada, na fala, daqui a pouco perdida, de meus conterrâneos da
contracosta. Sei em que conta me terão os que querem a ponte e não tem como
dizer que só estão mesmo é a fim de grana, venha ela de onde vier e como vier.
Conheço os polissílabos altissonantes que empregam, sei da sintaxe
americanalhada em que suas exposições são redigidas e provavelmente pensadas,
como convém a bons colonizados, já ouvi todos os verbos terminados em “izar”
com que julgam dar autoridade a seu discurso. É bem possível que a ponte seja
mesmo construída, mas, pelo menos, não traio meu velho avô.
Artigo publicado na 2ª página do 1º caderno
do Jornal “A TARDE”, dia 22/01/2010.
Vale salientar que um dos responsáveis pelo
empreendimento é o Engenheiro Manoel Ribeiro Filho (Ex-OAS), que por triste
coincidência, vem a ser irmão do autor do artigo. O projeto básico foi
contratado, pelo governo estadual, por R$ 22,5 milhões com o consórcio formado
pelas empresas Enercil, Maia Melo e a holandesa Cowi, em 07/03/2014.
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