Por Miguel do Rosário, no blog O Cafezinho
Já sabíamos que a campanha seria pesada, mesmo assim sempre nos surpreendemos quando a guerra começa.
Sobretudo porque ela, a baixaria, não chega vestindo trajes típicos. Não chega exibindo o logotipo “baixaria” na testa.
Ela vem travestida de reportagens “imparciais” e de notas em colunas políticas.
Os jornais amanheceram hoje com tantas manipulações que chega a dar medo. O núcleo da campanha tucana voltou para onde sempre esteve: as redações da grande imprensa.
Até aí tudo bem. Sabíamos que seria assim. O problema é o método. O Globo parece ter encarnado o espírito de Joaquim Barbosa. Ou melhor, agora vemos que Joaquim Barbosa encarnava, na verdade, um demônio cevado nos porões da Vênus Platinada.
Sobrou até para a OAB-RJ e para a Comissão da Verdade do Rio.
A grande imprensa não é muito criativa. Ela vai usar o método que já deu certo. Criminalizar, dividir, constranger. Com ajuda de seus tentáculos no Estado, que são muitos e poderosos.
O caso dos 23 ativistas presos – e agora soltos sob habeas corpus – é emblemático. A questão não é a culpabilidade dos mesmos, que deveria ser analisada com tranquilidade por juízes isentos.
A questão é a atmosfera irrespirável de linchamento, criada deliberadamente por vazamentos seletivos de um inquérito cujo acesso foi dado a um jornal antes mesmo de chegar às mãos dos próprios advogados de defesa.
Conversas íntimas entre advogados e seus clientes são expostas publicamente, num contexto agressivamente manipulador.
A relação entre Estado e indivíduo, num processo penal, é sempre assimétrica. O Estado tende a esmagar o indivíduo. Quando a imprensa se alia ao Estado contra um ou mais indivíduos, deixa de ser apenas mais uma assimetria. Torna-se um massacre. Uma covardia insuportável.
A condenação midiática é muito mais perigosa, muito mais pesada, que a condenação judicial, porque a Justiça, mal ou bem, segue regras. A mídia, não.
Os 23 ativistas, por exemplo, mesmo se condenados, não pegariam mais que três anos de prisão. Como são réus primários, poderiam responder em liberdade ou cumprir penas alternativas. O clima pesado de linchamento, porém, pressiona o Judiciário a mantê-los fechados num presídio.
Ou a tratar garotos (talvez) apenas irresponsáveis como agentes perigosos da desordem e da subversão.
Parte da esquerda governista permanece extremamente ressentida – com carradas de razão – pelas consequências negativas causadas pela violência nas manifestações. Criou-se um clima de instabilidade política e abriu-se espaço para uma forte reação conservadora.
Entretanto, a gente viu o que aconteceu no ano passado. Não podemos fazer 23 bodes expiatórios, 23 garotos, pagarem por um fenômeno de massa.
No auge dos protestos, um colunista do jornal O Globo divulgou em suas redes sociais que os depredadores eram os “únicos que o representavam”. Ele não apenas elogiava aqueles que depredavam lojas. Ele os alçava a condição de herois.
Um âncora respeitado de uma grande emissora apareceu em vídeo conclamando a depredação de patrimônio público e privado.
Um dirigente da Rede foi flagrado “pressionando” uma barra de ferro contra a estrutura do Itamaraty.
Se é para condenar, então teríamos que prender todas essas pessoas. Prender garotos porque operavam redes sociais e convocavam pessoas a vir às ruas, ou prender uma advogada porque “emprestava” a casa para reuniões políticas, é loucura.
A mídia insuflou as manifestações. Divulgava mapas, horários. O próprio twitter da Globo era sempre misteriosamente hackeado, e utilizado por supostos “rebeldes” para convocar protestos populares.
O Globo chegou a dar quase página inteira a protestos de uma ou duas pessoas.
A direita mastigou os manifestantes, bochechou-os e agora os cospe no meio da rua. E quer faturar eleitoralmente posando de paladina do “Estado Democrático de Direito”.
A violência política que finge abominar, a direita leva para a esfera judicial e midiática. Ao ridicularizar o desespero da advogada que pediu asilo ao Uruguai, a mídia pratica um sadismo maquiavelicamente calculado. Qual o sentido em aterrorizar uma pobre senhora?
Tensionados, nervosos, assustados, alguns garotos se reúnem num canto da UERJ e repetem jargões marxistas, assim como fazem estudantes no mundo inteiro, sem nenhuma consequência prática, e o Globo descreve o encontro como se estivesse diante de um embrião da Al Qaeda.
Por que o Globo criminaliza apenas os radicais de esquerda?
E todos aqueles que pregavam a derrubada violenta do governo para implantação de uma nova ditadura militar?
As redes sociais estão repletas de psicóticos violentos, a começar pelos comentaristas presentes nos próprios portais da grande imprensa.
Cria-se uma enorme confusão. Os pais dos jovens presos não sabem o que está acontecendo. Até pouco tempo, seus filhos eram herois nacionais da mídia e da intelectualidade acadêmica. De um dia para outro, se tornam párias da sociedade.
Como assim? A Folha de hoje revelou que todas as acusações contra os ativistas vieram de uma única testemunha de acusação. Não diz quem é.
Os internautas me perguntam, perplexos: ora, Miguel, você acha que eles não fizeram o que fizeram? Você não vê que eles fizeram o jogo da direita? Deixe de ser “bonzinho”, Miguel!
Um outro, fã antigo do blog, cancela a assinatura e diz que eu estou defendendo “fascistas”.
Ora, a diferença entre um fascista e um não-fascista é justamente essa: em se tratando da defesa de um tratamento digno, por parte da mídia e do Estado, um não fascista defende até mesmo um fascista.
Um autêntico democrata defende até mesmo o seu antípoda ideológico.
Isso não quer dizer complacência com o crime. Se houver provas de que pessoas planejavam atos de violência, então que o caso seja julgado com rigor e bom senso, considerando o contexto e a temperatura política do momento.
Me parece claro, todavia, que devemos evitar que haja contaminação política ou eleitoral de casos que envolvem a liberdade de cidadãos brasileiros. Os brasileiros precisam incorporar um dos princípios elementares do direito moderno e humanista: é melhor deixar mil culpados em liberdade, do que tolher a liberdade de um inocente.
Se havia medo de uma grande manifestação violenta no último dia de Copa, que se mantivessem os suspeitos sob vigilância durante as horas críticas.
Não vale usar o argumento, este sim fascista, de que há milhares de pessoas presas injustamente no Brasil, então não deveríamos nos preocupar com mais esses 23.
Não vale usar o argumento de Luis Barroso, ministro do STF, para negar prisão domiciliar a um cardiopata, alegando que há outros presos doentes que poderiam estar em domiciliar e não estão. Não é por aí.
O objetivo de um Estado Democrático de Direito é reduzir as iniquidades, e não “democratizá-las”. Não há sentido em “democratizar” a injustiça.
O Estado tem o dever de proteger a maioria de violências perpetradas por minorias. A democracia pressupõe a hegemonia da maioria. Mas pressupõe também o respeito absoluto aos direitos e à dignidade de todo cidadão.
Por outro lado, os ativistas precisam ter consciência que eles também foram postos numa armadilha. O discurso de que vivemos uma “ditadura” é uma falácia. Não vivemos. Muito menos uma “ditadura do PT”.
Os ativistas foram processados por um Judiciário independente. Independente, falho, conservador, vulnerável à pressão de uma mídia monopolista e antidemocrática. Mesmo assim, independente.
Importante frisar: eles ainda não foram condenados. Como partido de governo, o PT não pode e não deve aceitar as constantes provocações para que entre em conflito com o Judiciário.
As condenações dos ativistas não são “culpa do PT” ou do ministério da Justiça. São decisões que emanam de magistrados com nome, sobrenome e ideias próprias. E a maioria dos juízes, por questão de classe, não gosta do PT. O PT não tem nada a ver com isso.
O problema aqui é outro. O problema aqui é que vivemos um momento de acomodação democrática, de um lado, e de testes dos limites da liberdade, de outro. Testes que geram tensionamento político e social.
Não há ditadura. Estamos sob uma democracia. Uma democracia repleta de injustiças, arbitrariedades, corrupção e monopólios. Uma democracia, enfim, como qualquer outra.
Uma democracia onde se pode criticar qualquer governante e qualquer poder.
Uma democracia onde se pode questionar, sim, uma decisão judicial.
Uma democracia onde se pode protestar contra qualquer coisa, a qualquer momento, em qualquer lugar.
Uma democracia onde não é (ou não deveria ser) crime fazer política. Onde não é crime assumir posições ideológicas, mesmo radicais. Onde não é crime ser militante político. Onde não é crime ser ativista. É crime, sim, depredar patrimônio público ou privado. Mas não é um crime político. É um crime comum.
O único crime realmente político numa democracia é sabotar o processo democrático. Esse crime foi cometido há cinquenta anos, pelas mesmas empresas de mídia que usam o capital político e financeiro usurpados na ditadura para posar, hoje, de paladinas da democracia.
Como que para provar minha tese, Merval Pereira cita duas vezes os blogs em sua coluna de hoje, tentando desqualificar o seu papel num debate politico plural. Não deixa de ser divertido ver a toda-poderosa Globo, com seus milhares de funcionários e seu faturamento de bilhões por ano, polarizar com blogs operados artesanalmente por cidadãos sem conexões partidárias, sindicais ou empresariais.
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