É preciso evocar a “providência divina” para justificar esse frankenstein histórico
Por Saul Leblon na Carta Maior, Extraído do Conversa Afiada
Mal comparando ...
DEUS E O DIABO NA TERRA DA GLOBO
Há 60 anos do suicídio de Vargas, o conservadorismo reedita em farsa a tragédia. Ensaia um simulacro de catarse nacional varguista em torno da morte de Campos.
O conservadorismo brasileiro já viu o poder escorrer pelos dedos algumas vezes. Mas nunca de forma tão abrupta como há 60 anos, quando Getúlio Vargas cometeu o suicídio político mais demolidor da história em 24 de agosto de 1954.
Chocada com a morte de um governante que preferiu renunciar à vida a abdicar do mandato como exigia o cerco virulento das elites, a população foi às ruas em um misto de consternação e fúria para perseguir e escorraçar porta-vozes do golpismo contra o Presidente.
A experiência da tragédia abalou o cimento da resignação cotidiana. No Rio de Janeiro, a multidão elegeu a dedo o seu alvo simbólico: cercou e depredou a sede da rádio Globo que saiu do ar.
Carros de entrega do diário da família Marinho foram caçados, tombados, queimados nas vias públicas. Prédios de outros jornais perfilados no ultimato pela renúncia conheceram a força da ira popular.
Com a mesma manchete do dia anterior, atualizada pela fatalidade, os exemplares do único jornal favorável ao governo, o Última Hora, eram disputados nas esquinas por uma população desesperada, perplexa, em luto.
A tiragem extra de 850 mil exemplares, providenciada a toque de caixa pelo editor Samuel Wainer, sustentou a declaração premonitória de Getúlio 24 horas antes. Agora, porém, revigorada pela mão do editor: “O presidente cumpriu a palavra: ”Só morto sairei do Catete!”.
O resto é sabido.
O sacrifício impôs duro recuo ao golpismo que só executaria seu plano original de tomar o poder dez anos depois, em 1964.
Passados exatos 60 anos da morte de Vargas, o conservadorismo brasileiro reedita agora uma trama ainda mais ousada.
Construir um simulacro de catarse nacional varguista a seu favor, emprestando à justa consternação pela morte de Eduardo Campos uma dimensão histórica que ela não tem.
Assim como a de Tancredo Neves também não teve.
Ambas por uma razão difícil de abstrair: nem um, nem outro personificaram, de fato –e assumidamente– um polo da correlação de forças em disputa pelo comando da sociedade e do desenvolvimento brasileiro.
Vargas, ao contrário, encarnara um divisor real, consagrado nas urnas de outubro de 1950, de forma esmagadora, apesar do asfixiante boicote que lhe foi imposto pela mídia.
Na resposta ao cerco, a campanha de Vargas levaria uma frota de caminhões a cruzar o país munida de caixas de som e filipetas.
Em cada morada do voto fazia-se a ampla distribuição de panfletos. Neles, a promessa revolucionária –para a época– de um Brasil nacionalista e de feição popular.
Quatro milhões de eleitores deram seu voto a esse desassombro; o dobro dos obtidos pelo ‘brigadeiro das elites’, Eduardo Gomes.
Iniciou-se, então, aquilo que passou à historia como o ‘segundo Vargas’, para se diferenciar de seu primeiro ciclo no poder, iniciado com a revolução de 1930, que se estendeu pela ditadura de 37.
O ‘segundo Vargas’ criou o BNDE (sem o ’s’ ainda) em 1952; a Petrobrás em 1953, no auge da campanha ‘o petróleo é nosso’ ,e decretou um aumento de 100% do salário mínimo no 1º de Maio de 1954.
Era uma rota de colisão incontornável.
Ao mesmo tempo em que espetara as estacas necessárias à dimensão industrializante da soberania nacional, com infraestrutura, restrições à mobilidade do capital estrangeiro e expansão do mercado interno, Vargas atraía as espirais de um cerco de interesses que hoje, como ontem e sempre sonegaram legitimidade a um dinâmica de desenvolvimento inclusiva.
Só uma grosseira remodelagem da história poderá atribuir a Eduardo Campo ou a seu avatar feminino idêntica importância histórica.
Nem mesmo com sinal trocado.
Campos, antes e, ao que tudo indica, Marina de agora em diante, transitam num espaço de ambiguidade resultante do fracasso conservador em tornar palatável a restauração neoliberal no país, após 12 anos de governo do PT.
Seu candidato do peito, José Serra, mostrou-se indigesto ao eleitor por duas vezes e, por fim, ao próprio partido. O digerível Aécio Neves antes mesmo do embicar no aeroporto da fazenda do tio Múcio, bateu num teto baixo em torno de 20% dos votos, insuficiente para arrastar Dilma ao 2º turno.
A delicada operação em curso consiste em dar abrangência nacional-varguista à comoção do povo pernambucano pela perda do líder que governou o estado por duas vezes; e de transferir esse sentimento para uma terceira persona, Marina Silva, de modo a injetar competitividade eleitoral em uma quarta, Aécio Neves, e assim provocar uma segunda volta às urnas na base do ‘todos contra Dilma’.
Não surpreende que a ‘providência divina’ seja evocada para costurar esse frankenstein histórico.
Nessa alquimia destinada a produzir um adversário sobre-humano, uma junção de vivos e mortos para derrotar Dilma, caminhamos perigosamente do êxtase para o delírio conservador.
Não é preciso esfalfar neurônios para imaginar quem será o núcleo diretor dessa superprodução destinada a reeditar em farsa a tragédia de 54.
A persistir a ladainha das últimas horas, ingressaremos num degrau grotesco de manipulação da opinião pública para sustentar o que se pretende a partir de um fato gerador que não o comporta.
Glauber Rocha que entendia a força do misticismo na sociedade brasileira sem dúvida trabalhou esses elementos de forma mais complexa do que a encenação grotesca que se anuncia como realidade.
Glauber morreu há 33 anos, em 22 de agosto de 1981. Tinha apenas 42 anos de idade, mas aos 25 já havia realizado Deus e o Diabo na Terra do Sol.
O filme estrearia no Rio de Janeiro três dias depois do lendário comício da Central do Brasil e duas semanas antes do golpe de 64.
‘Deus e o Diabo’ guarda a atualidade de uma metáfora da encruzilhada brasileira, uma sociedade mergulhada em contradições estruturais dilacerantes mas sem força transformadora para efetivar as famosas ‘reformas de base’.
No filme, o vaqueiro Manoel encarna o povo brasileiro, a ‘massa pobre’, diria Glauber. Injustiçado pelo coronel para quem trabalhava, Manoel depois de mata-lo e ser perseguido engaja-se sucessivamente na procissão desesperada do beato Santo Sebastião e no bando de Lampião.
Mas não encontrará redenção nessas manifestações primitivas de rebelião, que Glauber valorizava como uma ruptura com o racionalismo bem comportado e inócuo diante da opressiva ordem dominante.
O cinema do premiado diretor de ‘Terra em Transe’, porém, não hesitava também em denunciar os limites dessa chave alternativa, expondo-a no paradoxo de uma estética aflitiva na qual os personagens parecem presos ao chão enquanto a câmera se move vertiginosamente ao seu redor.
Deus e o diabo se confundem na terra do sol, parece nos dizer Glauber. A figura dilacerada do jagunço Antônio das Mortes, talvez o personagem matricial da sua saga, dividido entre a consciência social e a obrigação pistoleira, é a síntese dessa tragédia.
Mas nem tudo é ambiguidade. Pelo menos isso o cinema de Glauber, deixou claro em relação ao país: ‘Deus nos deu a vida; o Diabo inventou o arame farpado’, dizia .
A farsa em curso nos dias que correm visa justamente embaralhar esse divisor.
Quer vender arame farpado como sinônimo de redenção da vida brasileira.
A ver.
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