COLUNA DO SERTANEJO
(Coletânea de artigos próprios, de Jornais, Revistas, Publicações, livros etc).
Ano 01 – Salvador, 15 de julho de 2013.
“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda para contá-la”.
Gabriel Garcia Marques
Uma das minhas especialidades é ser ignorante em várias especialidades. Falo sério. Não é imodéstia. Evidente que tenho espírito crítico. Mas a palavra ignorante não me agrada, ela é depreciativa. Prefiro dizer jejuno. Jejuno é mais sofisticado. Mais erudito.
Seja como for, jejuno ou ignorante, aprendi que muitas coisas que se aprendem nesta vida a gente só usa em casos muito especiais. No entanto, não se devem jogar fora como inúteis. São como parafusos, arruelas, pregos, pedaços de arame enferrujado – que o digam os amigos e ex-sócios João Edmundo Mendes Botelho e Paulo da Hora Oliva – que a princípio parecem não valer nada, servem apenas para ocupar espaço numa gaveta, no entanto, de repente, toca a procurá-los para quebrar um galho, como se diz. É o que aconteceu mais ou menos com o caso das cabras, que passo a contar, se me dão licença.
Sempre morei em cidade grande. Queimadas, onde nasci, foi uma delas. Mas a rua era típica de bairro proletário. Nela funcionavam a grande oficina de manutenção de locomotivas da R.F.F.L.B. (Rede Ferroviária Férrea Leste Brasileira) , uma fábrica multinacional de celulose (Grupo Klabin) e uma Usina de leite. Escrevo Usina com letra maiúscula porque era um centro importante e movimentado onde, todos os dias, eram descarregados latões de
leite in natura resfriado, coletados nas inúmeras propriedades da região para ser industrializado e distribuído nas cidades vizinhas. A Usina em atividade até hoje, dedicada apenas na fabricação de requeijão, era envolvida por um permanente cheiro de leite cru. Essa é a parte da rua, digamos progressista.
A parte bucólica consistia na presença invisível de alguns galos, cujo canto acordava os quintais, em que havia lagartas de fogo, galinhas, pássaros e a presença, semanal e indefectível, do homem do bando de cabras recém-paridas que passava vendendo leite de casa em casa. Dizia-se que o leite de cabra era bom para os pulmões e evitar a tuberculose. O leite era extraído ao vivo, diretamente dos úberes e espirrando em copos e canecas. Fazia uma espuma bonita de ver.
Embora houvesse um contraste nítido entre o sistema manual de venda de leite de cabra a domicílio e o funcionamento automático da Usina de pasteurização, não se notava nenhum tipo de concorrência de mercado. De modo geral, as mães compravam leite de vaca e de cabra. Ou ora um, ora outro. Isso as que compravam. Algumas mães só tinham condições de servir apenas café puro.
O que interessa é que numa das casas da rua, uma casinha simples, com canteiros de margaridas e uma horta de coentro e alface, morava o professor João de Souza Guedes, baixo, gordo, que dava aula na Escola Comercial José de Alencar, que não mais existe e onde tive oportunidade de fazer o primeiro ano ginasial. No local, hoje, funciona a Câmara Municipal da Cidade de Queimadas. Todo mundo sabia que ele era professor. Além de cara e óculos de mestre, passava sempre com um livro volumoso sob um dos braços e guarda-pó branco, no verão ou no inverno. Gostava de parar e ficar
olhando o bando de cabras e cabritos ao longo da rua enquanto o dono ordenhava uma delas para atender pedido de alguém.
A cena das cabras e do professor Guedes as admirando merecia uma foto, se eu tivesse tido a ideia de bater uma foto. Mas a verdade é que eu não tinha máquina fotográfica. O que é uma pena. As cabras sumiram. Não existem mais. A única coisa que restou na rua é a Usina de leite. O mestre Guedes faleceu de morte natural, por estafa de material. Tudo isso faz muito tempo. Só estou relatando esse caso quase totalmente verdadeiro porque, certo dia, o professor Guedes me disse duas coisas importantes, que nunca esqueci: que um bando de cabras se chama “fato” e que toda cabra e um “semovente”.
Nunca tive oportunidade de revelar essas coisas que aprendi na vida. Hoje, por sorte, aproveito para usar essas duas palavras sugestivas. “Fato e semovente”. Eu sabia que, um dia, elas me seriam de utilidade para contar uma história. Afinal, não sou ignorante, ou jejuno, que seja incapaz de inventar verdades.
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