(Coletânea de
artigos próprios, de Jornais, Revistas, Publicações, livros etc.)
Ano 02 – Salvador,
17 de fevereiro de 2014.
“A vida não é a
que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda para contá-la”.
Gabriel Garcia
Marques
Por William Brasil
Era plena
madrugada quando os cachorros começaram a latir no canil. Tenho ao todo quatro,
que dormem a meia distância entre a casa do caseiro e a minha. São animais de
grande porte, todos vira-latas. Latiam ao mesmo tempo, fazendo uma barulheira
que tomou conta do sítio.
Levantei da cama
assustado. Vesti uma calça e um chinelo. Peguei a lanterna e enfiei uma arma na
cintura, um velho Taurus 38 de cano curto, de cinco tiros. Não acendi nenhuma
luz, mas, enquanto andava pela casa, fui verificando se portas e janelas
estavam devidamente trancadas. Com a mão na coronha do revólver, abri uma
fresta na porta de entrada. Senti o ar que veio do jardim, gelado e úmido, mas
não vi nada. Apontei a lanterna para a varanda e, sem detectar nenhuma ameaça,
dei um passo para fora da casa. Mas continuei de porta aberta, pronto para
correr de volta se fosse preciso.
O frio me deixou
arrepiado e ligeiramente trêmulo. Tentei ouvir alguma coisa além dos latidos e
do barulho que os cachorros faziam enquanto balançavam as telas de arame, jogando contra
elas suas patas fortes e todo o peso de seus corpos.
Acendi as luzes da
varanda. Nenhuma sombra se mexeu. Devagar, olhando em volta e com a lanterna
abrindo caminho, fui até
o canil. Encontrei
por lá Miro, meu caseiro, um típico nordestino de Queimadas, de rosto queimado
pelo sol, cabelo preto encaracolado crespo, olho preto, pele negra e cheia de
vincos.
Ele acendeu as luzes, fazendo seu rosto brilhar como uma louça rachada.
Embora estivesse do meu lado, tamanha era a barulheira no canil que mal escutei
sua voz quando perguntou:
“O doutor sabe o
que deu neles?”
Balancei a cabeça
negativamente. Eram todos cachorros grandes e saudáveis, mas em geral mansos,
ou pelo menos maduros, bastante habituados à convivência do grupo. Não estavam
brigando entre si. Eu nunca tinha visto um ataque de fúria igual.
O canil é dividido
em baias, que podiam ou não se comunicar. Cada baia para um cachorro e, no
fundo de cada baia, o recipiente de água e a de comida. Examinamos todo o
ambiente: o piso e as muretas de blocos cerâmicos, as portas e os pontos de
circulação interna, as telas, com seus dois metros de altura. Não havia nada lá
dentro.
Do lado de fora, também não encontrei nenhum buraco suspeito no arame,
nenhum sariguê, gato ou saguim cercando o espaço. Muito menos movimento de
gente. Vi apenas a mulher do caseiro, Ana, na janela de sua casa, nos dando
retaguarda à distância.
Um sopro de vento
frio arrepiou novamente meu corpo. No limiar da escuridão, reparei que as
plantas do jardim balançavam, mas foi uma cena de cinema mudo. Não era possível
ouvir nada além das ressonâncias guturais que nasciam na garganta dos cachorros
e explodiam na madrugada, ou o ruído áspero das telas do canil sendo sacudidas.
Até Dalila, uma
fêmea dócil, presente de Fernanda, estava transtornada. Latia sem parar e seu
olhar fulminava, fixo e ardente, como se uma ameaça muito próxima rondasse o
canil. Aquiles, um vira lata todo preto e enorme, meteu os caninos entre os
gomos da tela, travou o maxilar e sacudiu a cabeça com tanta força que eu achei
que iria conseguir arrancar a grossa trama metálica dos canos onde estava
presa. Ao soltar a mordida, sua gengiva estava toda ensanguentada.
Sem nenhuma
explicação que justificasse aquele comportamento, falei com Miro que o melhor a
fazer naquele momento, era voltarmos para nossas casas. Até hoje, quando
relembro o acontecido, fico todo arrepiado. Não consegui nenhuma explicação
plausível para o ocorrido.
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