quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Eu ainda tenho medo




COLUNA DO SERTANEJO
(Coletânea de artigos próprios, de Jornais, Revistas, Publicações, livros etc.)
Ano 02 – Salvador, 17 de fevereiro de 2014.

“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda para contá-la”.
Gabriel Garcia Marques

Por William Brasil



Era plena madrugada quando os cachorros começaram a latir no canil. Tenho ao todo quatro, que dormem a meia distância entre a casa do caseiro e a minha. São animais de grande porte, todos vira-latas. Latiam ao mesmo tempo, fazendo uma barulheira que tomou conta do sítio.

Levantei da cama assustado. Vesti uma calça e um chinelo. Peguei a lanterna e enfiei uma arma na cintura, um velho Taurus 38 de cano curto, de cinco tiros. Não acendi nenhuma luz, mas, enquanto andava pela casa, fui verificando se portas e janelas estavam devidamente trancadas. Com a mão na coronha do revólver, abri uma fresta na porta de entrada. Senti o ar que veio do jardim, gelado e úmido, mas não vi nada. Apontei a lanterna para a varanda e, sem detectar nenhuma ameaça, dei um passo para fora da casa. Mas continuei de porta aberta, pronto para correr de volta se fosse preciso.

O frio me deixou arrepiado e ligeiramente trêmulo. Tentei ouvir alguma coisa além dos latidos e do barulho que os cachorros faziam enquanto balançavam as telas de arame, jogando contra elas suas patas fortes e todo o peso de seus corpos.

Acendi as luzes da varanda. Nenhuma sombra se mexeu. Devagar, olhando em volta e com a lanterna abrindo caminho, fui até
o canil. Encontrei por lá Miro, meu caseiro, um típico nordestino de Queimadas, de rosto queimado pelo sol, cabelo preto encaracolado crespo, olho preto, pele negra e cheia de vincos.

 Ele acendeu as luzes, fazendo seu rosto brilhar como uma louça rachada. Embora estivesse do meu lado, tamanha era a barulheira no canil que mal escutei sua voz quando perguntou:
“O doutor sabe o que deu neles?”

Balancei a cabeça negativamente. Eram todos cachorros grandes e saudáveis, mas em geral mansos, ou pelo menos maduros, bastante habituados à convivência do grupo. Não estavam brigando entre si. Eu nunca tinha visto um ataque de fúria igual.

O canil é dividido em baias, que podiam ou não se comunicar. Cada baia para um cachorro e, no fundo de cada baia, o recipiente de água e a de comida. Examinamos todo o ambiente: o piso e as muretas de blocos cerâmicos, as portas e os pontos de circulação interna, as telas, com seus dois metros de altura. Não havia nada lá dentro.

Do lado de fora, também não encontrei nenhum buraco suspeito no arame, nenhum sariguê, gato ou saguim cercando o espaço. Muito menos movimento de gente. Vi apenas a mulher do caseiro, Ana, na janela de sua casa, nos dando retaguarda à distância.

Um sopro de vento frio arrepiou novamente meu corpo. No limiar da escuridão, reparei que as plantas do jardim balançavam, mas foi uma cena de cinema mudo. Não era possível ouvir nada além das ressonâncias guturais que nasciam na garganta dos cachorros e explodiam na madrugada, ou o ruído áspero das telas do canil sendo sacudidas.

Até Dalila, uma fêmea dócil, presente de Fernanda, estava transtornada. Latia sem parar e seu olhar fulminava, fixo e ardente, como se uma ameaça muito próxima rondasse o canil. Aquiles, um vira lata todo preto e enorme, meteu os caninos entre os gomos da tela, travou o maxilar e sacudiu a cabeça com tanta força que eu achei que iria conseguir arrancar a grossa trama metálica dos canos onde estava presa. Ao soltar a mordida, sua gengiva estava toda ensanguentada.

Sem nenhuma explicação que justificasse aquele comportamento, falei com Miro que o melhor a fazer naquele momento, era voltarmos para nossas casas. Até hoje, quando relembro o acontecido, fico todo arrepiado. Não consegui nenhuma explicação plausível para o ocorrido.



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