segunda-feira, 21 de abril de 2014

LAMPIÃO – O SALVADOR




COLUNA DO SERTANEJO

(Coletânea de artigos próprios, de Jornais, Revistas, Publicações, livros etc.)

Ano 02 – Salvador, 14 de abril de 2014.

“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda para contá-la”.

Gabriel Garcia Marques

Por William Brasil


A vida de Lampião me veio à lembrança em plena madrugada, quando atravessava o sertão escaldante baiano, retornando de uma visita aos parentes residentes nos municípios de Quijingue, Cumbe, atual Euclides da Cunha e Monte Santo, este último palco do genocídio que foi a Guerra de Canudos, tão bem descrita nos seus mínimos detalhes por Euclides da Cunha em sua obra prima “Os Sertões”, pelo húngaro Sándor Márai em “Veredicto em Canudos”, por Mario Vargas Llosa em “A Guerra do Fim do Mundo” e por Frederico Pernambucano de Mello em “A Guerra Total de Canudos”.

Ao mirar o espetáculo daquele cenário, lembrei-me das histórias contadas por meu avô, Pedro Calçade e por meu pai, Analdino Calçade outros, que vivenciaram momentos tão tristes de nosso passado recente.

O sol se perdia longe, a penumbra ocupava o horizonte até que a noite engoliu a beleza árida da região. Logo só os faróis dos carros mostravam adiante, o risco preto do asfalto. Mesmo no desconforto da estrada, adormeci. As curvas acentuadas da rodovia BA-120 conduziam o corpo a um lado e outro da poltrona do ônibus, enquanto induziam o espírito a uma viagem sem fim. E dormi. E sonhei.

O ônibus parou bruscamente. Foi sorte não acontecer uma desgraceira, após estourar um pneu dianteiro, em descida de curvas sinuosas. Desci do ônibus e afastei-me em busca de um lugar seguro. Algo cintilou na escuridão. Procurei proteção atrás de uma árvore. Muitos objetos moviam-se em nossa direção. Criei coragem e perguntei se era gente. Não responderam. Tem alguém aí, gritei. É gente viva? É de outro mundo? Sem resposta aproximam-se mais. Certifiquei-me que eram pessoas, homens. Pedi ajuda: Valei-me meu Santo Antônio!

As figuras pararam. Mirei bem o olhar. Armas compridas apontavam em minha direção. Grandes chapéus enfeitados reluziam na escuridão. Era Lampião e seus cangaceiros. Gritei: Capitão! É o senhor, capitão Virgulino? Como resposta, uma das figuras gritou: “Não se mexa, cabra da peste, se não morre”. É o Capitão Virgulino, sim. Com o cabo da arma no peito, puxou o gatilho e atirou para cima.

Era mesmo Lampião, o homem mais valente que nasceu no Brasil, acompanhado por um séquito de bandoleiros. Arma comprida ao ombro, cartucheiras ao peito, arma curta no coldre e imenso punhal descendo até a metade da perna. Apesar de saber o nome dos principais homens de Lampião, a escuridão não me deixava ver a fisionomia de nenhum deles. Inebriado pelo encontro inesperado, joguei-me no chão. Capitão Virgulino, é o senhor mesmo? O senhor não morreu há tanto tempo?

Com a voz segura, Lampião me fez crer o contrário. Você é besta, cabra da peste? Já viu protegido de Santo Antônio das Queimadas morrer? Mas, capitão, e esse exército de cangaceiros também é gente viva? Só tem uma forma de saber se meus homens estão vivos ou não, e deu a ordem:

Beija-flor, você que é um dos mais fracos, mostre a este cabra que está vivo. O cangaceiro adiantou-se, desapeou do cavalo e arrastando o peso dos embornais, armas e cartucheiras, caminhou ao meu encontro. Mal encostou, desceu-me o braço. A sensação era ter recebido uma tijolada na cabeça. Arriei.

E agora, o que diz? Beija- flor é vivo ou morto? E olhe que é o cabra mais fraco. Gosta de cozinhar, costura bem, só dorme com o cabelo arrumado e, não gosta de maltratar bicho. Então? Levante e responda: é morto ou vivo?

Estou vindo de muito longe para ter uma conversa séria com os administradores da cidade de Queimadas que nada fazem em prol da população sofrida do município. Concordei.

Estava também retornando a Queimadas. O capitão interessou-se e fez algumas perguntas: qual a distância, quantos dias a cavalo, como era a chegada, o nome do prefeito etc. Atendi prontamente ao seu questionamento: informei que a distância era de aproximadamente 150 léguas, que ele gastaria em torno de vinte dias para chegar à cidade, que a única dificuldade era a travessia do rio Itapicuru e que o prefeito, de direito, era um jovem de nome Terêncio Pereira e o de fato, a sua genitora conhecida pelo nome de “Queridinha”. Lampião afirmou que a administração do município era muito confusa e que iria dar uma solução em tudo.

No dia seguinte partiu em direção a Queimadas para cumprir sua missão. Despedimo-nos ali mesmo, depois de feita a força no pneu do ônibus.

O ambiente era tranquilo, branco e quieto. A família aguardava manifestação do médico a respeito do paciente. O chefe do plantão, Dr. Ednaldo, se aproxima; todos buscam a fisionomia, indicador de notícias boas ou ruins. O médico sorri... Novidades boas...

A esposa, filhos e irmãos aguardam a boa novidade. O paciente reagiu, já suspendi os sedativos e deve acordar logo. Os enfermeiros já o trazem ao quarto.

Logo, a maca desponta no corredor, sendo acompanhada pelos parentes do enfermo.

Instalados no quarto, aguardam com apreensão o retorno da consciência do ente querido, em coma profundo há mais de sessenta dias. O paciente move o dedo do pé, respira mais forte, levanta a mão rápido, fala alto...

Capitão, capitão, não vá capitão! Fique aqui em Queimadas. Precisamos de você. Por favor, capitão, eu lhe peço...

Atônitos, os parentes não sabem o que fazer. Antes que chamem o médico, o paciente abre os olhos, ainda murmurando a palavra capitão. A mulher dirige-lhe carinhosamente a palavra: Wilson, meu amor, sou eu, Maria do Rosário, sua esposa. Wilson Calçade, o nome do paciente, olhos arregalados questiona: Onde está o capitão Virgulino, o Lampião? A mulher responde preocupada: Meu amor, aqui não tem capitão. E Lampião está morto há muito tempo. Você deve ter sonhado.

Que aconteceu?

Você sofreu um grave acidente quando retornava de Quijingue para Queimadas. O ônibus capotou nas proximidades da travessia do rio Jacurici. Morreram sete pessoas, todas pertencente a Polícia Militar do Estado da Bahia. Você se salvou por milagre, meu amor. Agora está tudo bem.

Wilson Calçade fechou os olhos... Não é possível... Era real demais para ser sonho.

Ainda não preparado para a realidade Wilson Calçade voltou a dormir...

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