terça-feira, 15 de julho de 2014

Ainda há chance de salvar o Velho Itapicuru

         
Esta foto é de uma enchente quando a velha ponte da ferrovia ainda existia


                 Dois meses atrás, quando o "Velho Itapicuru" retomou suas curvas, seu fôlego e ares de rio devido às chuvas que após tanto tempo caíram em abundância, andava eu a lembrar os tempos de fotógrafo amador (era o que eu queria fazer quando na Faculdade de Comunicação) e dei de cara com o Poço do Bevé. Bem, na verdade, com o local onde antes da "Barragem dos Coxos" existira o "Poço do Bevé".

         "Point" famoso por um longo período entre as décadas de 60 e 70 que atraia jovens e adolescentes queimadenses em busca de um refresco para os escaldantes verões. O "Poço do Bevé" ficava próximo à "Praia do Jacaré" formada por bancos de areias que alternavam de lugar ao sabor das enchentes da primavera, verão ou, no mais tardar, com as chuvas de inverno, mas do outro lado do rio se tomarmos a cidade de Queimadas como ponto de referência, portanto às margens da "Ilha".

         Saudades? Sim, e não. Sim, porque o tempo, Senhor da razão, não apaga nossas lembranças e muito menos aquela dorzinha no peito ao lembrarmos ou sentirmos o sabor das doces paixões juvenis, ou de simples encontros de adolescentes a "curtir" aquelas águas mornas na superfície e saborosas, por serem frias, ao mergulharmos sem receio não mais do que um metro naquele poço de águas escuras para mitigar a sede.

         Registrava com uma simples câmera de celular aquele mundão de água. Claro que já vi enchentes maiores do que a dos jovens de hoje, assim como meu pai vira outras maiores do que eu. Exemplo: a enchente de 1948, garantida sua eternização pela marca na famosa "Pedra do Juazeiro" monumento romantizado pelo político, escritor e poeta queimadense Antonio Nonato Marques com um traço, em vermelho, na altura que alcançou suas águas para que gerações futuras jamais esquecessem que corre um rio de sangue nas veias de nossa terra.

         Não, pelo sentimento de dor porque as novas gerações não terão como compartilhar este "experimento", este sentimento que só o tempo e o conhecimento "escondem" num cantinho de nossos cérebros e, estejamos onde estivermos um simples barulho de água a escorrer nos remeterá àquelas lembranças. Da mesma forma que uma música, assim como que do nada nos oferece o sabor de um beijo roubado ou, não, em tempos que já não nos lembraríamos mais.

         Sim, "Poço do Sucuruiu", "Banheiro dos Homens", "Chalé", Praia do Jacaré", "Poço do Bevé", "Pão", "Banheiro das Mulheres". Não importavam as denominações ou sua localização. Como esquecer o "Jogo do Derruba", na verdade, uma gangorra feita com três nós estrategicamente feitos na corda, sabiamente amarrados a uma galha da Ingazeira a que cada um dos garotos pulava com a obrigação de derrubar o(s) que se encontrava(m) fortemente dependurado(s) e permanecer com mãos e pés "amarrados" à corda?

         Sim, às lavadeiras que anos por anos a fio marcaram com suas músicas e conversas trechos onde as pedras eram mais visíveis deixando-as embranquecidas pelo uso do sabão de massa ou mesmo o caseiro feito com soda cáustica nas roupas colocadas a enxaguar. De longe, escondidos em moitas de "abre-fecha" (nunca conseguir saber o nome científico deste arbusto) ou, em marés de areia, meninos a vasculhar alguma mais desavisada com saia esquecida acima dos joelhos.

         Não, à poluição, esta, sim a pior das agressões que o Velho Itapicuru vem sofrendo ao longo de toda a sua história, provocada pelo despejo, sem controle, dos esgotos domiciliares, comerciais, industriais e de hospitais e clínicas. Não, ao desmatamento criminoso de sua mata ciliar e da retirada de barro para o fabrico de tijolos e blocos, facilmente observado ao longo das suas duas margens.

         Não, às secas que marcaram para sempre a memória de várias gerações, como a do meu avô, meu pai e a minha que tinham o rio como seu principal referencial. Lembram da música de Gilberto Gil, Procissão? Pois eu menino acompanhei uma delas, lá pelo final dos anos 50.

         Era uma multidão serpenteando as areias escaldantes do leito seco, driblando vez ou outra as cacimbas cavadas pelos aguadeiros em busca do precioso líquido em procissão do "Chalé" até às proximidades da "Pedra do Pão" e dali, seguindo em direção à Capelinha de São José, no ritmo cadenciado da ladainha "Meu divino São José. Aqui estou a vossos pés" que abre a música de Gilberto Gil.

         Mas, sim, sim, sim e milhares de vezes sim, por só seres, o que és. Por só existires. Por ofereceres mais do que o presenteamos. Por nos receberes em seu leito quente, escuro e macio quando só agredimos-te, lançando todo o tipo de veneno. Mesmo assim resistes, teima em lutar contra este infortúnio criminoso e ressurge esplendoroso quando os céus regidos por São Pedro ao lado São José despejam água em dilúvio purificando-te e limpando-te, mesmo que por pouco tempo, das sujeiras que infligimos.

         Ah! lá ia a procissão se arrastando que nem cobra pelo chão. Dou-te um até logo amigo Itapicuru e jamais um adeus. Ainda há esperança. Se o Pitu e tantas espécies de peixe de suas águas desapareceram pela rapinagem dos ignorantes, vamos juntos, todos, gente, governo e rio brigar pelas obras de implantação da Estação de Tratamento de Esgoto, projeto já pronto, e juntar as mãos contra a destruição de sua mata ciliar. Não é tudo que mereces, mas é um começo. Dou-te um até logo amigo.

Procissão (Gilberto Gil)

Olha lá
Vai passando
A procissão
Se arrastando
Que nem cobra
Pelo chão
As pessoas
Que nela vão passando
Acreditam nas coisas
Lá do céu
As mulheres cantando
Tiram versos
Os homens escutando
Tiram o chapéu
Eles vivem penando
Aqui na Terra
Esperando
O que Jesus prometeu
E Jesus prometeu
Coisa melhor
Prá quem vive
Nesse mundo sem amor
Só depois de entregar
O corpo ao chão
Só depois de morrer
Neste sertão
Eu também
Tô do lado de Jesus
Só que acho que ele
Se esqueceu
De dizer que na Terra
A gente tem
De arranjar um jeitinho
Pra viver
Muita gente se arvora
A ser Deus
E promete tanta coisa
Pro sertão
Que vai dar um vestido
Pra Maria
E promete um roçado
Pro João

Entra ano, sai ano
E nada vem
Meu sertão continua
Ao Deus dará
Mas se existe Jesus
No firmamento
Cá na Terra
Isso tem que se acabar

Nenhum comentário:

Postar um comentário