Por Sylvia Debossan Moretzsohn no Observatório da Imprensa
O que deveria ter sido uma manchete escancarada e escandalizada sobre uma aberração jurídica foi solenemente ignorado pela imprensa mais influente no país. Ao noticiarem o pacote anticorrupção do Ministério Público Federal, dois dias depois de o governo apresentar seu próprio conjunto de medidas nessa área, os três principais jornais deram ênfase ao endurecimento das penas, à classificação de crime hediondo para a corrupção que envolvesse altos valores, à possibilidade de extinção de partidos políticos envolvidos na roubalheira. Tudo de acordo com o argumento, tão surrado quanto falso, de que penas mais duras inibem a disposição para o cometimento de crimes. Mas, claro, tudo muito ao gosto popular, como a imprensa sabe desde sempre e o MPF, pelo visto, também.
Os jornais só se esqueceram de um detalhe: a proposta de validar provas ilícitas, embutida no pacote.
O Globo ignorou o assunto completamente. O Estado de S.Paulo, que na véspera (20/3) havia antecipado o anúncio das medidas, trouxe uma única referência a esse absurdo no quadro sobre “Propostas contra corrupção” da matéria coordenada na página 11 da edição seguinte: “Ajustes nas nulidades penais” – e o leitor que se vire para descobrir do que se trata. A Folha de S.Paulo também publicou um quadro em que cita as “nulidades”, com uma explicação pouco esclarecedora: “Tenta evitar que pequenos erros na fase de investigação derrubem operações inteiras”. No meio da reportagem, deu voz ao procurador Deltan Dallagnol, responsável pelas ações da Operação Lava Jato na Justiça Federal do Paraná:
“Eledestacou a necessidade de ajustes nas nulidades penais, erros que podem levar à derrubada completa de uma investigação na Justiça – como aconteceu com a operação Castelo de Areia, que caiu por ter usado grampos telefônicos na fase inicial de apuração.
De acordo com Dallagnol, é preciso ponderar o tamanho do erro. ‘Não podemos derrubar um prédio porque se encontrou um vazamento num cano. Somente erros muito graves podem levar à derrubada de um prédio’.”
É só a cabecinha?
O apelo a metáforas é comum para tentar facilitar o entendimento de coisas complexas. Mas às vezes – muitas vezes, quase sempre – a simplificação é mistificadora. Sim, quem se preocuparia com detalhes, filigranas jurídicas, diante do mal maior a ser combatido? Apresentada assim, a proposta parece muito palatável, principalmente para quem não tem conhecimento do mundo jurídico e político nem percebe a abrangência e as consequências dessas singelas “exceções”. E que, ainda por cima, está clamando nas ruas contra a corrupção: tantos pudores em relação a investigações, ora, que bobagem... queremos os criminosos na cadeia!
Seria ótimo, se fosse tão simples. Porém, as coisas são bem mais complicadas que isto. Se apelássemos para outra metáfora popular, aquela que diz que “é só a cabecinha”, talvez fosse possível começar a esclarecer o que está em jogo.
O alerta do Conjur
Quem chamou a atenção para esse escândalo – e fez jornalismo a sério, como tem feito regularmente, na contramão da grande imprensa – foi o site Consultor Jurídico, que, na noite de sexta-feira (20/3), destacou: “MPF propõe mudança para que prova ilícita seja aceita na Justiça“.
Esta seria a notícia, pelos critérios que os jornais celebram em seus manuais, e os editores em suas entrevistas, mas teimam em descumprir.
A reportagem informa que o uso de provas ilícitas implica mudança no Código de Processo Penal e estaria subordinado a uma espécie de relação custo-benefício: ocorreria quando“os benefícios decorrentes do aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito preventivo”. Faz lembrar as “técnicas de interrogatório avançadas” ou “conjunto de procedimentos alternativos” do discurso malabarista da CIA para deixar de nomear a prática de tortura na obtenção de informações na sua “guerra ao terror”. Mas não: para tranquilidade geral da nação, em boa hora os nossos procuradores ressalvam que casos de tortura, ameaça e interceptações sem ordem judicial não seriam admitidos.
Ainda bem.
A reportagem confronta, em seguida, o artigo 5º da Constituição – “cláusula pétrea” – que afirma serem “inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”, com o argumento favorável a essa, digamos, flexibilização: segundo o subprocurador geral da República Nicolao Dino Neto, chefe da Câmara de Combate à Corrupção, “é preciso fazer uma ponderação de interesses e verificar em que medida a eventual irregularidade na produção da prova pode indicar prejuízo à parte. Se não houver algo que evidencie prejuízo à defesa, nada justifica a exclusão dessa prova”.
Reação vigorosa
A notícia provocou a reação do jurista e procurador aposentado Lenio Streck, que indagou, no mesmo site do Conjur: “O que fazer quando o Ministério Público quer violar a Constituição?“ De saída, acusou: “Querem regras mais fáceis... para o MP. E para a Polícia. Pouco importa o que diz a Constituição”. Em seguida, contestou:
“O que é a ponderação de interesses? Interesses de quem? Estamos tratando de direitos ou de interesses? Voltamos ao início do século XX? Estão lendo os livros errados lá no MPF? Ninguém estuda nesse país?
“E o que é ‘eventual irregularidade’? Quem diz o que é e o que não é irregularidade? O MP? O juiz, com sua consciência? Ah, bom. Vamos depender das boas consciências de juízes e promotores”.
Lenio Streck apontou também a sugestão de que os ajustes no Código de Processo Penal prevejam que, no caso de anulação de atos praticados durante as investigações, o juiz ordene providências para que sejam “repetidos ou retificados”. “Como assim, Excelência? Quer dizer que, se existir uma prova ilícita, o juiz pode mandar consertá-la? Vou estocar comida. Passaram dos limites”.
Mas o principal é a sua consideração mais geral sobre o sentido da proposta:
“Quer dizer que a interceptação telefônica pode ser feita inconstitucionalmente? Quer dizer que os fins justificam os meios? E os efeitos colaterais? E o precedente que isso gera, procurador? Ah, mas era uma carga de cocaína. Ótimo. E quem diz que o juiz ou o promotor ou o policial não vão usar isso em outras ocasiões? Abrir a porteira do ilícito cometido pelo Estado é cair na barbárie. Isso mesmo”.
Exceção ilimitada
Vale a pena recordar aqui um trecho do livro O inimigo no direito penal (ed. Revan, 3ª ed., 2011), em que o jurista argentino Eugênio Zaffaroni desmonta o argumento de que medidas de exceção possam ser adotadas, como seus defensores candidamente sustentam, “apenas na estrita medida da necessidade”:
“(...) para os teóricos – e sobretudo para os necessidade que não conhece lei nem limites. Aestrita medida da necessidade é a estrita medida de algo que não tem limites, práticos – da exceção, sempre se invoca uma porque esses limites são estabelecidos por quem exerce o poder”.
As pessoas comuns não parecem compreender isso e se regozijam quando os limites legais são ultrapassados para punir alguém que, publicamente – portanto, de acordo com a propaganda promovida pela mídia –, é apontado como inimigo público. Não percebe que o uso da exceção acaba transformando-a em regra, e que todos estarão expostos a essa situação, ficando à mercê “das boas consciências de juízes e promotores” ou, pior que isso, de todos os constrangimentos que os agentes do Estado podem exercer, diante das previsões de excepcionalidade legal.
“Constrangimento”, claro, é uma denominação mais delicada para “corrupção”, exatamente o que tanto se deseja combater.
As perversões do espetáculo
Tudo isso se encaixa no que o juiz Rubens Casara chamou, em artigo publicado em fevereiro deste ano, de “processo penal do espetáculo” (ver aqui), evidenciado nos casos que ganham repercussão na mídia e que transformam delegados, promotores, advogados e juízes em celebridades. Na entrevista a Paulo Moreira Leite (em 22/3, ver aqui), Casara reitera: “O processo penal do espetáculo é uma corrupção”. E explica:
“Ao afastar direitos e garantias fundamentais em nome do bom andamento do espetáculo, o Estado-juiz perde a superioridade ética que deveria distingui-lo do criminoso. Não se pode combater ilegalidades recorrendo a ilegalidades ou relativizando o princípio da legalidade estrita; não se pode combater a corrupção a partir da corrupção do sistema de direitos e garantias fundamentais. Punir, ao menos na democracia, exige o respeito a limites éticos e jurídicos. No processo penal do espetáculo, não é assim”.
Em seguida, aponta a simplificação maniqueísta do processo:
“O espetáculo aposta na exceção: as formas processuais deixam de ser garantias dos indivíduos contra a opressão do Estado, uma vez que não devem existir limites à ação dos mocinhos contra os bandidos. Para punir os ‘bandidos’ que violaram a lei, os ‘mocinhos’ também violam a lei. Nesse quadro, delações premiadas, que, no fundo, não passam de acordos entre ‘mocinhos’ e ‘bandidos’, violações da cadeia de custódia das provas e prisões desnecessárias – estas, por vezes, utilizadas para obter confissões ou outras declarações ao gosto do juiz ou do Ministério Público – tornam-se aceitáveis na lógica do espetáculo, sempre em nome da luta do bem contra o mal”.
E não é só:
“Em nome do ‘desejo de audiência’, as consequências sociais e econômicas das decisões são desconsideradas. Para agradar à audiência, informações sigilosas vazam à imprensa, imagens são destruídas e fatos são distorcidos. Tragédias acabam transformadas em catástrofes. No processo penal do espetáculo, as consequências danosas à sociedade produzidas pelo processo, não raro, são piores do que as do fato reprovável que se quer punir”.
Uma aliança nefasta
Pensemos na construção da imagem do ministro Joaquim Barbosa, durante o Mensalão, como paladino da Justiça, e na do juiz Sérgio Moro, agora na Operação Lava Jato, ambos premiados pelo jornal O Globo, quando o respeito à liturgia do cargo exigiria resguardar-se de holofotes e homenagens promovidas por interesses privados, para preservar a necessária isenção, inclusive na hipótese – remota, é verdade – de certas empresas precisarem ser investigadas. Pensemos no procurador geral, Rodrigo Janot, que recentemente se deixou fotografar com um cartaz que o saudava como “a esperança do Brasil”.
A aliança entre esta imprensa e as autoridades seduzidas pelo espetáculo leva dúvidas quanto ao motivo do silêncio em relação a tamanha aberração no pacote do MPF. Terá sido incompetência, desatenção, incúria? Terá sido conivência? Porque é flagrante demais, escandaloso demais, grave demais para passar despercebido.
A reportagem do Conjur, compartilhada na internet, provocou o comentário de um cidadão espantado: “Talvez eu tenha delirado”, diz ele, mas “talvez estejamos assistindo a uma monstruosa lavagem de provas ilícitas. A Polícia Federal e o Ministério Público podem ter andado espionando cidadãos sem mandado, por suspeita política, e agora obtêm, sob enorme constrangimento em prisões provisórias/permanentes, as confissões que permitirão legalizar aquelas provas anteriormente obtidas de forma ilícita.”
Será mesmo delírio? Se dependermos desta imprensa, jamais saberemos.
Nas recentes manifestações de protesto contra o governo, esta mesma imprensa fez o favor de ocultar as cenas contraditórias ao clima de festa: as ofensas, os insultos e, principalmente, as faixas e discursos que pediam intervenção militar. Pautou-se pela exaltação aos apelos anticorrupção e em defesa da democracia – os mesmos, aliás, que sustentaram o golpe hoje cinquentenário. Agora, ignora a proposta de medidas que instilam o germe do Estado de exceção na carapaça democrática. Estará esta imprensa novamente conivente com o golpismo?
“Abrir a porteira do ilícito cometido pelo Estado é cair na barbárie”, acusou Lenio Streck. Teria a mesma razão se tivesse falado em fascismo.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora deRepórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007
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