segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O Lobisomem



COLUNA DO SERTANEJO

(Coletânea de artigos próprios, de Jornais, Revistas, Publicações, livros etc.).
Ano 01 – Salvador, 17 de junho de 2013.

“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda para contá-la”.
Gabriel Garcia Marques


Por William Brasil

Binha, grande amigo de infância, proprietário do melhor restaurante de Queimadas, foi quem me deu a notícia. Havia sintomas da presença de um lobisomem nos arredores da cidade. Estávamos em plena quaresma do ano de 1980. A quaresma é a temporada forte de atuação dos lobisomens. Para quem não sabe, lobisomem na região, nada tem haver com lobos. Não passa da transformação de um homem em porco erado, comedor de titica de galinha. Binha me explicou que todo lobisomem tem a péssima vocação de passar adiante a sua “escrita”, mordendo alguém. A vítima se tornará lobisomem a partir do ano seguinte.

Pois bem, o tal licantropo teria atacado a população do Rio do Peixe, povoado situado na margem esquerda do rio de mesmo nome, divisa entre os municípios de Queimadas e Santa Luz, numa noite de reza. Um acontecimento absolutamente incomum. Lobisomem que é lobisomem prefere as horas tardias, ao redor da meia noite, e procura vítimas isoladas. Esse do Rio do Peixe, contrariando as regras, investira quando um grupo de fiéis se dirigia à igreja, pouco depois do crepúsculo.
Ao que parece não se registraram vítimas. Todos se refugiaram na igreja e trancaram as portas. Consta que o lobisomem, depois de rondar o templo, desistiu e teria sido visto em retirada em direção a Queimadas.

Deixei Binha no restaurante e procurei o caminho da cidade. Julguei que era meu dever cívico alertar a população local para o perigo iminente. Assim, na caminhada de meia légua, fui avisando a todos que encontrei. Ao cair da noite, parei na casa de Ademar Moura. Sentado na varanda da casa, voltei a desfiar a história da assombração ameaçadora. Não demorou a que toda família se reunisse a nós. Os meninos, empurrados pelo ventinho frio do medo, ficaram bem juntinhos num banco. O mais velho, já adolescente, estava pronto para sair. Desistiu.

Eu voltaria a Salvador pouco depois. Saí pela manhã, e o lobisomem atacou naquela mesma noite. Zé Boneco, de saudosa lembrança, me colocou a par dos acontecimentos, dois meses mais tarde.

Naquela noite, Zé Boneco estava em seu bar, como sempre atrás do balcão atento às conversas dos fregueses, pronto para dar seu palpite em qualquer assunto. De repente, alguém se lembrou do lobisomem, dando início a uma breve discussão sobre a eventual existência do monstro.

Sertanejo que é sertanejo evita declarações categóricas. Os presentes logo passaram a utilizar uma velha fórmula para liquidar o assunto que se tornara incômodo. “Num sei, nunca vi, mas respeito”. Tendo em vista a hora e a caminhada noturna que em breve se imporia a todos para o regresso ao lar, ninguém estava disposto a invocar a fera sobre humana.

Menos um rapaz de barbinha rala e de voz pastosa. Lançava desafios por cima do queixo erguido: “Cêis são medrosos; Qual é lobisome? Isso não existe; Se aparecê, asso no dedo”. E saiu de supetão numa arrancada temerária: adernava perigosamente de um lado para o outro. Os demais se calaram fazendo o sinal da cruz com
rapidez e discrição. Não demorou e começaram os gritos desesperados rua abaixo. O rapaz pedia socorro a Santo Antônio, santo de sua devoção, sem dispensar a solidariedade humana: “Gente, o bicho taqui, me cercô, acode” – berrava sentado no chão.

O pessoal que ainda se encontrava no bar de Zé Boneco gelou. Mas logo saiu em socorro do desafortunado bebum. Crentes, tinham a obrigação de acudir um cristão assediado pelas forças das trevas. Correram todos, reforçando o estoque de sinais-da-cruz e recitando jaculatórias. Poucos metros adiante o rapaz, encompridado pelas sombras da noite, um vulto indistinto os recebeu com um ronco surdo e disparou para o terreno ao lado, mas com muito medo, o grupo voou em sentido contrário, carregando o bêbado.

Ao amanhecer, o lobisomem continuava no terreno. Fuçava calmamente. Era uma porca que fugira da pocilga do criatório de Analdino Brito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário