quarta-feira, 31 de julho de 2019

Jessé Souza: por que Moro ainda não caiu?

 
Publicado no blog de Jessé Souza
Sergio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
POR JESSÉ SOUZA
O escândalo da “Vaza Jato”, provocado pelo The Intercept e pela extraordinária coragem de Glenn Greenwald, desmascarou a hipocrisia do jeito brasileiro de fazer política que já vem acontecendo há mais de cem anos. A Lava Jato não é, afinal, uma história de cinco anos que começa em 2014 com o “escândalo da Petrobras”, mas sim uma história que vem desde 1930, quando Getúlio toma da “elite do atraso” o poder de Estado. Foi aí que se construiu a ideia estapafúrdia de que a “corrupção só da política”, usando o conceito de patrimonialismo como contrabando, é a raiz de todos os problemas brasileiros. A construção dessa ideia ridícula como suposta explicação central para os problemas brasileiros “coincide” com a ascensão de Vargas ao poder político contra as elites do dinheiro. Como a elite do dinheiro tem que “moralizar” sua rapina, desde então seus inimigos são perseguidos e sistematicamente depostos do poder com falsas acusações de irregularidade pelo uso supostamente “patrimonialista” e corrupto do Estado e da política.
Como nenhum fato isolado se explica por si só, é necessário articular conscientemente a cadeia entre as causas. Toda exploração econômica tem que se servir de um “álibi”, ou seja, de um recurso simbólico que torne o fato da exploração invisível enquanto tal, para poder ser exercida de modo que os próprios explorados a considerem aceitável ou inevitável. O caso brasileiro é, no entanto, um caso limite. Alguma forma de distorção da realidade está sempre presente em todos os casos de sociabilidade humana conhecidos na história. No caso do nosso país, como o escândalo da “Vaza Jato” mostra tão bem, a capa de moralidade não é mera distorção da realidade vivida. Aqui, tal realidade é “invertida” e posta de cabeça para baixo, o que explica o caráter patológico e neurótico para quem vive a conjuntura política atual.
Afinal, a descoberta irrefutável de uma quadrilha funcionando dentro do aparelho de Estado, usando os cargos públicos não apenas para enriquecimento e vantagens pessoais, mas também como uma forma despudorada de manipular a opinião pública e minar todos os pressupostos da democracia com fins partidários, não levou – ainda –sequer à perda dos cargos nem à prisão dos responsáveis. A lei parece não se aplicar aos desmandos de Moro e sua quadrilha, muito menos para as fontes de renda misteriosas da família Bolsonaro. Será que é porque esse pessoal assegura, por outro lado, o saque do Estado e das riquezas nacionais pela elite endinheirada? Quem ainda possuir dois neurônios intactos saberá responder.
Mas, e como fica a necessidade de se criar uma capa de moralidade e de falseamento da realidade para legitimar os desmandos? A Lava Jato funcionou como articulação explícita para a “corrupção real”, a da apropriação por agentes privados de empresas públicas a preço de banana, o mesmo que, aliás, aconteceu recentemente com a BR Distribuidora, pelos bancos que tiveram uma reunião secreta com Fux e Deltan. Ao que parecia, a questão era que o PT não podia ser alçado ao poder para não melar os “bons negócios”. Então, com uma corrupção tão descarada como essa, como ninguém dos “camisas amarelas” vai às ruas para pedir que a honestidade volte?
Ora, só pode ser porque a maior parte dos “camisas amarelas” nunca esteve de fato interessada em combater a corrupção. O que, de resto, apenas comprova a tese do falso moralismo do “combate à corrupção”, visto que só vale para partidos populares. A dificuldade geral, especialmente para a elite e a classe média, é a perda do único “álibi” existente para mascarar seu ódio e desprezo pela população negra e mais humilde sob a forma da falsa criminalização dos seus representantes. É a compreensão intuitiva disso, o que explica também as idas e vindas de órgãos da elite, como a Veja e a Rede Globo, na cobertura do caso. Eles precisam manter um vínculo com a realidade, agora desmascarada, sob o risco de perder qualquer legitimidade, até para a parte mais esclarecida do próprio público. Por outro lado, estão envolvidos até o pescoço na manipulação desse mesmo público. O jogo havia sido controlado de cima pela elite e sua imprensa venal. Moro e Deltan foram apenas os “laranjas”, os pequenos oportunistas que ficam com as sobras do negócio grande. Tudo indica que a parte mais esclarecida da classe média já desceu do barco. Reinaldo Azevedo e outros arrependidos falam para esse público.
É Bolsonaro e sua base de poder infensa a argumentos racionais que permite a continuidade da farsa. O seu público não precisa de legitimação porque seu protesto radicalizado está vincado em sentimentos irracionais como ressentimento, inveja social e preconceitos racial e de classe. Inveja e ressentimento contra os de cima, o que explica os ataques à arte, à cultura e ao conhecimento em geral. Também a vingança, há muito esperada, contra séculos de desprezo dos “doutores” contra os remediados entre os pobres, a base real de Bolsonaro, muitos dos quais são brancos e, por isso, se acham no direito “racial” de um futuro melhor do que de fato possuem. Contra os de baixo, por sua vez, a raiva se volta para os negros e mestiços pobres que tiveram a ousadia de ascender socialmente no período recente e de chegar ainda mais perto deles. É difícil saber o que causa mais revolta nestes 20% da população brasileira que são a base real da força de Bolsonaro: a raiva contra os de cima ou contra os de baixo. Esse é seu público cativo, os 20% que sempre apostaram nele mesmo antes da “fakeada”.
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Para esse pessoal, a democracia não é mais do que uma palavra odiada, afinal ela nunca lhes serviu para nada. Ela só parece vantajosa para os já privilegiados e para a população negra e humilde que ascendeu com o PT. Por causa disso, Bolsonaro lhes parece o “vingador” perfeito. O discurso contra as elites, utilizado para a arregimentação dos “bolsominions” para o último dia 26 de maio, mostra o sequestro do tema da luta de classes pela direita, já que a esquerda foi covarde e incapaz de qualquer protagonismo nessa área. Por outro lado, a única política pública informal efetiva do bolsonarismo é armar milícias e polícias para a chacina indiscriminada dos negros, índios e pobres, o que alimenta seu desprezo e o de seu público pelos mais frágeis. Da mesma forma que a distância em relação à “cultura” os inferioriza, a violência aberta contra os mais frágeis os torna “aparentemente” poderosos. A destruição da cultura e do conhecimento satisfaz sua inveja. A destruição dos fragilizados satisfaz seu desprezo e seu medo deles. É tudo aparência para mentes doentias, mas a aparência pode ser tudo para quem não tem mais nada.
Essa “minoria barulhenta” pressente que o momento da vingança chegou. Ela se tornou abertamente fascista porque é ela que diz: não importa se é ou não verdade o que diz a “Vaza Jato”. O que importa é o que é “necessário” para se sentir melhor do que se é. São pessoas em boa parte frustradas na vida privada, que usam a política como forma de dar sentido a uma vida vazia e sem direção. O “bolsominion” típico é um pobre remediado, na maioria um “lixo branco” sem cultura e sem grandes esperanças na vida, que, de repente, pode se ver como protagonista de alguma coisa. Ao se definir como conservador e de direita, se sente como alguém que “protesta”, um pequeno herói, supostamente contra as tendências de seu tempo, que ao se identificar com o tirano que “tira onda” de poderoso, se sente igualmente poderoso. Como é incapaz de compreender uma realidade complexa, refugia-se em bravatas estereotipadas e finge conhecer muito do que nada conhece.
Para essas pessoas, Moro é, hoje, tanto seu herói quanto Bolsonaro. Os “likes” de Moro desceram a escala social, embora ele não tenha a menor ideia disso. Acredita-se onipotente. Como sua valia para Bolsonaro era ser uma ponte com a classe média estabelecida pseudomoralista, toda a sua base de apoio mudou ou está mudando. Os 20% de supostos “empoderados” barulhentos é a única sustentação real do atual arranjo de poder. Bolsonaro, por sua vez, também depende de Moro. Afinal, a mentira da Lava Jato se alongou na própria mentira. Sem a Lava Jato não existiria Bolsonaro. Os dois são carne da mesma carne e sangue do mesmo sangue. A solução não é simples para ninguém neste jogo. Ver a “casa cair” é o que o “bolsominion” mais quer. Enquanto isso, a elite mais saqueadora quer a grana fácil das grandes mamatas e sequer se dá conta do perigo. Bolsonaro institucionaliza o roubo pequeno e miliciano do botijão de gás sem bandeira. Esses são, hoje em dia, os apoios efetivos da Lava Jato. Os 80% restantes observam bestializados um mundo que não mais compreendem.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Uma direita fraca a caminho de uma derrota histórica




Por Ion de Andrade, no GGN


Quando lidamos com um adversário que presumimos mais forte do que nós, uma reação bem esperável é fazer muito barulho. Ocorre quando o ser humano está ameaçado por animais selvagens, mas também em situações de ameaça de violência ou roubo nas cidades. As reações exageradas, barulhentas e espetaculosas costumam, portanto, ser um forte indício de inferioridade na correlação de forças. Servem, aliás, para esconder essa verdade e almejam uma vitória baseada no blefe e na covardia do oponente mais forte que pode não pagar para ver.
A febre pelas análises de conjuntura, de que a esquerda se tornou excessivamente dependente, dificultam qualquer análise mais larga que escape ao barulho produzido pelo adversário acuado e temeroso. A conjuntura nos leva a acreditar nas bravatas e nos faz esquecer de que quem é mais forte no cenário da política hoje são as forças nacionais democráticas que modelaram o Brasil contemporâneo.
Dizem as pesquisas de popularidade que a presidenta teria 9% de “ótimo” e “bom”, mas como explicar que 25% dos eleitores brasileiros continuem a se identificar com o PT? É claro que os 9% da presidenta estão incluídos nesses 25%, mas quantos são os que, embora avaliando mal o governo, não dariam (de jeito nenhum) o seu voto às forças conservadoras? Presumivelmente mais do que os 25% atribuídos ao PT. Essa análise de luz e sombras mostra que a base política da presidenta, apesar da decepção com o governo, parece sólida. Penso que os conservadores devem saber disto. Noutra pesquisa Lula teria 25% dos votos, Aécio 35% e Marina 18%... Por que é que Marina, que nada mais representa, foi incluída na pesquisa? Para evitar o óbvio: Lula vence Aécio em todos os cenários e seria inacreditável outro resultado...
Duas estratégias frágeis estão novamente abertas para impedir a presidenta. A primeira vinda do TCU não conseguirá, na hipótese da não aprovação das contas da presidenta, produzir a maioria necessária à cassação do mandato. O expediente foi utilizado por todos os governos da República antes de Dilma. O pacto pela legalidade recém alinhado demonstra a força dessa bancada que reúne mais do que o necessário para derrotar o PSDB e seus aliados numa empreitada como a derrubada de um governo que teve 54 milhões de votos.
A outra é a tentativa de cassar o diploma da presidenta no TSE. Como se o Tribunal Superior Eleitoral fosse reagir como uma torcida de futebol em que três votam pelo governo, três contra e Fucks seria o infiel da balança. Por favor. E há quem acredite em tamanha asneira mesmo no campo da esquerda. Para que o processo prospere o crime teria que ser muito bem provado o que, obviamente, está muito longe de ser o caso, até porque todos sabem que se trata de uma mentira.
Finalmente estamos numa quadra em que a direita, nesse esforço hercúleo de tentar intimidar o campo nacional democrático no grito, está indo longe demais. O grande elan que construiu o Brasil dos últimos anos ruma para a equidade, a tolerância, a liberalização dos costumes e a democratização da sociedade. Essa inércia pode até ser contida, mas ela é que é, indiscutivelmente a megatendência que molda a nação. O Brasil não tem repertório para, de uma hora para outra, vir a ser convertido numa república teocrática, racista, homofóbica e senhorial. Ao contrário, o que pode vir a ocorrer é que essa megatendência posta em contenção pelas forças conservadoras exploda eleitoralmente ainda em 2016 produzindo em grande escala o que já estamos vendo no microcosmo da política onde personagens como Malafaia rumam para o isolamento completo. Penso que hoje poucos o quereriam num palanque e isso já é bem diferente de há apenas escassos sete ou oito meses atrás...O sucesso do vídeo de Joanna Maranhão é outro indício de que os ventos estão mudando. A Globo defende Maju e esposo dos ataques xenófobos de uma extrema direita sem remédio e a Folha publica editorial louvando o Estado laico e a liberdade de costumes. Sim os ventos estão mudando.
Não se trata de PT, se trata da agenda modernizadora que o brasileiro comum não quer perder, da sua pertinência como nação, como disse a presidenta, a uma cultura e a valores ocidentais. A direita joga uma difícil carta, para retomar uma terminologia gramsciana de “orientalização” do Brasil para golpear o poder.
Sem força para derrotar o campo nacional democrático nas urnas, sem força para derrotá-lo na lei e sem forças para derrotá-lo na marra a direita aposta todas as suas fichas de que o derrotará com a derradeira arma do vencido: o ruído ensurdecedor da ameaça golpista. Para que isso desse certo teria que contar com uma covardia inédita da nação e com uma secretude que não existe mais: estão fracos e rumam para uma derrota histórica.
O circo acabou. O discurso golpista é a voz grossa de personagem esquálido e acabrunhado. Em sete meses de oposição feroz e sem trégua mostraram armas de baixo calibre, munição podre e muita verborragia. Isso é muito pouco para curvar uma democracia vibrante como a nossa. A convenção do PSDB mostra que não têm projeto de sociedade e estão perdidos. Uma autêntica oposição ao Brasil como em ato falho reconheceu alguém.
O discurso da presidenta sinaliza que os ventos mudaram de direção e que a iniciativa política pertence, novamente, ao campo democrático.
A reação de Aécio e Alckmin à entrevista de Dilma demonstra claramente que, longe de ser uma estratégia bem montada e detalhada, o golpe é uma aventura de políticos menores: ficaram ansiosos e mostraram espoleta curta...
Antevejo que o campo democrático e nacional esmagará essas forças orientais em 2016 e 2018. Firmeza e paciência, trabalho e foco. A megatendência que molda o Brasil é que tem supremacia e ela nos leva a mais equidade, mais tolerância, mais democracia e mais liberdade de costumes.
E o truque da ameaça golpista já era.

sábado, 27 de junho de 2015

.Apesar do ódio, Lula permanecerá intacto

(Foto: Marcos Bezerra / Futura Press)

“Na lápide de Lula hão de constar a incorporação dos miseráveis à agenda governamental, o desafio ao complexo de subalternidade das elites tradicionais”


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Poucos personagens públicos do Brasil contemporâneo serão homenageados com lápides congratulatórias. Em sua maioria nada têm de si senão a obsessão de sobrepujar o próximo. Aí confraternizam acadêmicos, artistas, esportistas, jornalistas e, claro, políticos, salvo Lula. Atávica inclinação vampiresca, o canibalismo de caráter não é produto exclusivamente nacional, está globalizado, mas temos produzido inspirados episódios de canalhice.

Não lhes faltam aplausos externos. Se o vampirismo é inevitável, o afã construtivo é matéria de escolha e competência – aqui a excepcionalidade de Lula. Ninguém dele dirá que tenha sido angelical. Nem isento de graves pecados. Provavelmente só o próprio conhecerá a extensão de sua vilania. Assim como seus adversários saberão das suas. Mas o que é público e notório está à disposição de todos, não obstante o verbo ressentido das denúncias.

Na lápide de Lula hão de constar a incorporação dos miseráveis à agenda governamental, o desmascaramento da ideologia da sociedade sem classes e sem raças, o desafio ao complexo de subalternidade das elites tradicionais. Audácia imperdoável. Há de constar que, ferido o indivíduo, empunharam armas os sombrios heróis dos assassinatos sem risco, das infâmias subsidiadas, da valentia do monólogo. Através do indivíduo miram os descalços e esfarrapados, como se o desejado féretro de um abolisse a existência dos outros. Em vão.

Nem sucumbirá o homem público nem o soterrarão os carnavais de almas rotas pelo ódio. É simplesmente triste observar a revelação da mesquinharia das assim chamadas pessoas de bem, justiceiros de oportunismo em busca de um naco da reputação do grande líder popular. Lula, o intérprete dos desassistidos, permanecerá intacto, ainda que o comprovem privadamente pérfido. É possível, mas será o homem com CPF, não o vitorioso no duelo com os reacionários. Estes não terão lápide, não terão memória, não terão registro. Serão abolidos.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Cunha é isso mesmo: sabotagem !

A folha profissional e policial do Comodoro da Ética.













CUNHA: O NOME EXPRESSA A FUNÇÃO




No universo militar, ‘cunha’ define uma ação sabotadora preliminar: ‘Consiste em introduzir em território inimigo soldados, espiões ou comandos especiais’.



 Saul Leblon, extraído da Carta Maior:


Quando um personagem encarna uma correlação de forças adversa e o faz de forma tão desabrida a ponto de soar caricatural, é comum catalisar a resistência e a rejeição do polo oposto.


Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, carrega no nome a função que lhe coube na história. No universo militar, ‘cunha’  define uma ação sabotadora preliminar. ‘Consiste em introduzir em território inimigo soldados, espiões ou comandos especiais’, diz o dicionário Caldas Aulete.

Dito e feito. A agenda do presidente da Câmara inclui sacramentar o poder do dinheiro grosso sobre os partidos, a homofobia, a terceirização total do trabalho, a redução da maioridade penal e outras miunças de igual calibre.

Foi por justiça homenageado no V Congresso do PT, que terminou sábado em Salvador. E retribuiu as vaias no twitter: ‘Agradeço as manifestações de hostilidade no congresso do PT. Significa que estou no caminho certo. Ficaria preocupado se fosse aplaudido ali’.

Não ficou por aí. Ao Congresso petista que dobrou a aposta em uma parceria pela governabilidade como PMDB, retrucou ferino: ‘Não vejo o PMDB com o PT em 2018. Essa aliança esgotou’.

Quando a linearidade dos personagens e a evidência dos conflitos se expõe assim de forma tão explícita, sem que as instituições políticas se mostrem adequadas para resolvê-los, abre-se um horizonte de empate histórico marcado por crises sucessivas, cujo papel é o de devorar seus atores, até que surjam novos arranjos dotados de força e consentimento social para destravar o passo seguinte da história.

Cunha não ocuparia o espaço no qual se espoja não fosse esse equilíbrio precário de dois garfos espetados em faces opostas de uma rolha em pé, na quina de uma mesa.

A rolha é a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro.

O Congresso do PT não vislumbrou um atalho capaz de destravar esse mutualismo autodestrutivo.

Quase sem respirar, o partido se sustenta em um lado da rolha, enquanto Cunha cospe fogo na extremidade oposta em nome dos interesses sabidos

Sua função,  como o próprio nome indica (e o pejo que causa em interesses que defende, ilustra, caso da Folha que o critica em editorial neste domingo) tem a efemeridade de uma etapa.

Limpa o trilho para algo pior. Embora nutra delírios presidenciais (ou vice-presidenciais, ao lado de Alckmin), sua funcionalidade equivale a de um enxergão da história.

Trata-se daquele artefato rudimentar de palha grosseira utilizado para forrar o estrado, sobre o qual as elites depositarão o colchão de mola para deitar e rolar nas costas do Brasil.

Um veículo internacional amigo dos mercados resumiu: Cunha é o homem que a direita procurava.

O que o deprecia é o seu mérito: Cunha une maus modos com determinação e absoluto despudor em atropelar as aparências dos punhos de renda da República de Higienópolis.

Os açougueiros da história não raro cometem exageros na sangra das peças. Emporcalham o avental e não primam pela higiene ao manusear a faca, a serra e a machadinha no cepo ensanguentado do embate político — mas entregam o essencial.

O essencial que a elite espera de Cunha é destrinchar o governo Dilma como um frango desossado da Sadia e pendurá-lo, junto com os petistas, em um gancho de aço no freezer da história.

Até escoar o calendário para as eleições de 2018.

A aristocracia alemã também não considerava Hitler um dos seus. Nem os ricaços italianos amavam Mussolini. Nos anos de chumbo muitas famílias de ‘bem’ preferiam não saber o que Fleury fazia em nome da causa no Brasil.

Eppur giravam seus interesses em torno desses centuriões aturando suas ‘extravagâncias’. Dos males, o menor.

O intercurso com os negócios, a homofobia, a moral gordurosa dos pastores salafrários nunca foi obstáculo à clientela que orbita em torno do cepo desses açougueiros datados.

No 2º turno de sua última derrota em São Paulo, nas eleições municipais de 2012, Serra mostrou a que ponto vai essa elasticidade quando um interesse mais alto se alevanta.

Ao prenúncio da derrota iminente o tucano recorreu a um interlocutor cirurgicamente escolhido para reforçar a musculatura do vale tudo na disputa: o pastor radialista Silas Malafaia, que veio diretamente do Rio de Janeiro apresentar armas à campanha, no posto de procônsul para os bons costumes, conspurcados, acusava o tucano, pelo kit-gay criado pelo adversário, Fernando Haddad, quando ministro da educação.

O pacto do além com o aquém seria festejado em manchete sulforosa do caderno de política da ‘Folha’, a mesma que agora critica Cunha em editorial à moda Pilatos. Assim: “Líder evangélico diz que vai ‘arrebentar’ candidato petista — Silas Malafaia afirma que Haddad apoia ativistas gay”.

O título em 3 linhas de 3 colunas emoldurava  foto imensa de Serra (meia pág. em 3 colunas), empunhando uma criança adestrada em fazer o ‘45′,

O conjunto ainda inspira calafrios.

A hostilidade beligerante de Serra em relação a adversários –inclusive os do próprio partido– pontuava ali um novo degrau na determinação conservadora de resgatar a extensão regressiva do filtro religioso na política.

A moda pegou e hoje deve ser creditada como mais uma modernidade trazida ao país pelos intelectuais iluministas de Higienópolis.

O posto de Malafaia em 2012 é ocupado agora por Cunha.

O editorial da Folha deste domingo lava as mãos. Mas não purifica a ética de vernissage de certa inteligência paulista.

Faz tempo que em certos círculos incorporou-se a licença do vale-tudo para vencer o PT, a quem se acusa de sepultar os princípios éticos da esquerda.

O pacto obscurantista selado por Serra antes com Malafaia, agora com Cunha e Renan (para implodir o pré-sal)  ilustra a travessia edificante.

Quem achava que depois da caça ao kit gay de 2012 estaria esgotado o estoque de excrescências nessa gincana errou.

Cunha é o açougueiro que ouve sermões de Malafaia em altos decibéis enquanto destrincha o governo, os direitos trabalhistas, a liberdade sexual, enfim, aleija e decepa a Constituição de 1988 e aviva os impulsos medievais da sociedade contra ela mesma.

A essa altura, tudo o que pedem certos círculos da inteligência tucana é que 2018 chegue logo.

Mas ainda faltam três anos e seis meses.

Dá tempo, por exemplo, de Cunha resgatar um projeto apresentado por Serra na disputa municipal de 2012, em São Paulo, destinado a inibir a criminalidade do menor.

Em entrevista à amigável rádio CBN, então, o tucano prometeu aos ouvintes: se eleito, criaria um programa de monitoramento de jovens com ‘propensão’ para cometer crimes.

Como? Um braço da ex-Febem, explicou Serra à emissora da rede Globo, agindo, (secretamente, supõe-se), dentro das escolas das periferias vigiaria jovens.  Nas palavras do então candidato tucano: “(Aqueles que) ainda não entraram para o mundo do crime, mas que podem ter propensão para isso”.

Alguém já pensou isso antes. Combater o crime identificando preventivamente o criminoso foi o propósito do criminologista e psiquiatra italiano, Cesare Lombroso (1835-1909), que se dedicou ao estudo da ‘antropologia criminal’.

O furor atual pela redução da maioridade tem aí um pé de apoio a considerar.

Está longe de ser apenas ‘moral’ e preventiva, porém, a ofensiva de Cunha para higienizar o país.

Cada vez mais ela ganha dimensões de um mutirão ecumênico determinado a afastar todo e qualquer obstáculo que se puser no caminho da hegemonia conservadora plena.

Na 4ª feira da semana passada, por exemplo, o presidente da Câmara mandou um recado ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Diante da possibilidade de a ministra Rosa Weber conceder liminar que anula a aprovação em primeiro turno do financiamento privado de campanha, Cunha comunicou ao presidente do STF, Ricardo Lewandowski, que isso poderia trazer retaliações ao Judiciário.

Age com o fervor da legítima defesa.

Na última campanha eleitoral, Cunha recebeu R$ 6,8 milhões em doações de empresas como Vale, AmBev, Santander, Safra e Shopping Iguatemi.

Antes, Cunha –e seu general de operações, Renan Calheiros, presidente do Senado, já havia ameaçado o Procurador geral da República, Rodrigo Janot, por investiga-lo. Pequenos partidos de sua base particular também foram constrangidos por contrariá-lo na reforma política com a qual pretende reduzir a lei eleitoral a sua imagem e semelhança.

À mídia que objetivamente o embala, Cunha recorda amiúde que qualquer projeto de regulação das comunicações depende do seu humor para entrar na pauta ou na gaveta do Congresso. Estabeleceu-se aqui um paradoxal mutualismo entre parasitas.

O pragmatismo propiciou-lhe apreciável cacife.

No seu quarto mandato consecutivo, o autor do projeto pela criação do Dia do Orgulho Heterossexual foi aplaudido ao depor em CPI que deveria investiga-lo sobre desvios da Petrobras.

O policial Jayme de Oliveira Filho, mula do doleiro Youssef, afirma que entregou malas de dinheiro em uma casa na Barra da Tijuca que seria de Eduardo Cunha. A pauta escafedeu-se das colunas da indignação seletiva hoje ocupadas em externar chiliques contra as doações legais ao Instituto Lula.

Cunha é um entreposto de interesses.

Líder da bancada evangélica e fiel da Igreja Sara Nossa Terra, o presidente da Câmara foi um dos principais opositores do Marco Civil da Internet fazendo lobby das telefônicas, que discordavam da neutralidade da rede.

Sua sentença sobre a liberação do aborto é autoexplicativa: ‘Só se for sobre meu cadáver’. E para que não haja dúvida da disposição mortífera, protocolou um projeto que estabelece até 10 anos de prisão para médicos acusados de práticas abortivas.

A ficha corrida desse Comodoro dos bons costumes acumula dois inquéritos em ‘andamento’: o de 2984/2010 apura o recurso a documentação falsa; o 3056 acusa crimes contra a ordem tributária.

Não só.

No Tribunal Regional da Primeira Região, ele é réu no processo 0031294-51.2004.4.01.3400  — ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual.

No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, é alvo do processo 0026321-60.2006.8.19.0001. Improbidade administrativa.

No Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro responde ao processo 59664.2011.619: captação ilícita de sufrágio. No mesmo tribunal é réu no processo 9488.2010.619.0153. Acusação: abuso de poder econômico em campanha eleitoral.

No Tribunal Superior Eleitoral,  responde por captação ilícita de sufrágio; processo 707/2007.

A cepa de origem explica o desembaraço diante dos imprevistos.

A carreira meteórica do presidente da Câmara teve como padrinho o tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, o falecido PC Farias.

Cunha foi o responsável pelas finanças do comitê carioca na campanha collorida de 1989.

Precisa desenhar?

Na vitória coube-lhe a presidência da antiga Telerj, a companhia telefônica do Rio, da qual seria demitido em seguida.

Motivo: corrupção.

Em 1999, o então governador Anthony Garotinho deu-lhe a presidência da Companhia Estadual de Habitação.

Durou seis meses.

Foi defenestrado em meio a um novo escândalo de corrupção.

Ágil, como soem ser as rapinas, escapou elegendo-se deputado estadual em 2001.

Desde então soube fazer da imunidade a mola propulsora de uma carreira vitaminada pela radiodifusão.

Seu programa de rádio consagra mote sugestivo ao desembaraço ético: ‘O povo merece respeito’

Nenhuma das questões essenciais que interessam à população brasileira encontrará resposta na crispação da lógica conservadora da qual esse personagem expressionista é o açougueiro alheio às boas maneiras.

As vaias recebidas no Congresso do PT não são injustas, mas ingênuas. E sobretudo incompletas nos desdobramentos competentes.

O país que se modela no interior do açougue é pior do que aquele desfigurado no cepo no qual Cunha pilota o banho de sangue conservador no país.

A receita temperada nos bastidores para desequilíbrios que são sérios é a da salmoura neoliberal definitiva. Menos Estado para se ter mais mercado; menos igualdade para se ter mais eficiência; menos salário para se ter mais investimento; menos democracia para se delegar ainda mais poder ao dinheiro organizado.

A esquerda brasileira dispõe de reservas intelectuais, tem experiência de luta, goza de respeitáveis lideranças políticas. Tem a densidade de movimentos sociais para afrontar esse projeto com um outro que pavimente a construção de uma verdadeira democracia social.

O V Congresso do PT não explicitou a disposição de ser o catalisador desse processo que permanece em aberto.

O partido de certa forma transferiu o embate para 2018.

É uma aposta de alto risco na mitigação da crise por obra e graça do ajuste de mercado.

Resta saber até que ponto, com esse gesto, não compromete de vez a única alternativa consequente à ofensiva conservadora em curso.

Ou seja, a construção de uma frente popular e democrática capaz de oferecer as respostas críveis ao futuro sombrio do qual Cunha é só o estandarte mais saliente.

domingo, 14 de junho de 2015

Há ainda quem “não entregue a rapadura”


ovelha-negra


Por Fernando Brito, no Tijolaço

Se coerência, nos dias de hoje, é uma pedra rara, difícil de encontrar, sempre o foi, quando as pessoas vão se ocupar altos cargos, tanto que surgiu o dito português ” se queres conhecer o vilão, põe-lhe na mão o bastão”, deliciosamente traduzido, se a memória não me trai, por Luiz Paulistano para o ofício de escrever: se quer conhecer o caráter de um jornalista, dê-lhe um cargo de chefia”.
Por isso, este blog – que sempre  confessou sua admiração por ele – reproduz a “carta de despedida” do diretor brasileiro do Fundo Monetário Internacional, o economista Paulo Nogueira Batista Jr., um dos mais brilhantes economistas de nosso país e, acima de tudo, um ser humano que continua a pensar, como sempre, no  desenvolvimento brasileiro como algo que não se separa do progresso social. Tudo isso refletido na maneira simples e compreensível de expressar suas idéias – tornou-se antológico o seu “turma da bufunfa” para definir quem tem o dinheiro e o controle da opinião “pública” aqui – perante os leitores de sua coluna – infelizmente hoje quinzenal e em O Globo, depois que a Folha, há cinco anos, o “executou sumariamente“.
Talvez por sua sinceridade e transparência, com a capacidade de não falar economês, Paulo Nogueira não seja hoje o Ministro da Fazenda do Brasil. Como se sabe, um Ministro da Fazenda do Brasil não deve apenas falar inglês; deve pensar em inglês e isso Paulo não faz.
Mas a notícia – e Paulo entra nela mais diretamente que eu – é das melhores.
Ele será o vice-presidente brasileiro do Banco dos Brics. Um belíssimo começo para o banco, onde Paulo, em lugar de ficar tomando pernadas e puxadas de tapete dos “donos do fundo” vai fazer nosso país ser mais que respeitado: ser querido, também, pela qualidade humana de seu representante.

Sobrevivi

Paulo Nogueira Batista Jr.
Há poucos dias, o governo brasileiro, em nota oficial, divulgou a minha designação para vice-­presidente do Novo Banco de Desenvolvimento. Agora posso falar sobre o assunto. Na verdade, era um segredo de polichinelo; a informação já havia vazado para tudo quanto é lado. Quando veio a nota oficial, a repercussão foi bem modesta.
É sempre assim, leitor. O jornalista sempre quer publicar, de preferência, o que o governo não quer divulgar. O que é of the record ganha manchetes. O que é oficialmente divulgado permanece rigorosamente inédito. Mas, enfim, estou de mudança para Xangai no início de julho, em menos de um mês portanto.
Nelson Rodrigues dizia que brasileiro não pode viajar. O brasileiro, a caminho do Galeão, já na Avenida Brasil, adquire automaticamente um descarado sotaque espiritual. Se o grande cronista tinha razão, a minha nacionalidade deveria estar em avançado estado de decomposição.
Em março de 2007, quando estava preparando as malas para Washington, publiquei um artigo aqui mesmo neste espaço, sob o título “Escrevam, reclamem!”, no qual antecipava as dificuldades que teria no FMI e discorria sobre o adestramento das elites dos países em desenvolvimento na capital do Império ( Washington) — esta cidade de onde ora vos escrevo outra vez, mais de oito anos depois.
Sobrevivi. Não diria intacto, claro. Tive que enfrentar umas barras e tenho as minhas cicatrizes. Mas lutei. Lutei para que o Brasil, aquele Brasil idealizado, que só existe no coração de alguns brasileiros, pudesse se orgulhar um pouco de mim.
Exagero? Só quem passou alguns anos em Washington ou qualquer outra cidade importante no mundo desenvolvido pode ter noção completa das dificuldades com que se defronta um subdesenvolvido quando transplantado para o centro do sistema internacional de poder. A verdade, leitor, é a seguinte: americanos e europeus ainda estão acostumados a mandar, acreditam que têm o direito de mandar, que não há outra solução. E ponto final.
O subdesenvolvido quando chega por aqui se defronta, portanto, com a seguinte disjuntiva: ou adere, sem qualquer restrição e objeção, acompanhando mansamente as diretrizes do Ocidente, ou será considerado um elemento hostil, um estranho no ninho.
Alguém perguntará: mas não há meiotermo? Não, infelizmente não. Conformismo total é o que se espera de um periférico que aporta por aqui. E subdesenvolvido que não conhece o seu lugar é caçado a pauladas, feito ratazana prenhe, diria Nelson Rodrigues (outra vez esse homem fatal!).
Ah, mas o subdesenvolvido que se acomoda, este pode ter uma boa vida por aqui. Depois de um período de experiência, é acolhido como membro leal de um clube confortável, com saunas, piscinas e toalhas felpudas — membro de segunda classe, é verdade, sem direito de decidir, mas membro mesmo assim.
Quero acrescentar um elemento importante a essa pequena fábula. O brasileiro não é dos piores. A subserviência internacional encontra muitos representantes mais entusiasmados e mais convictos. O brasileiro tem os seus escrúpulos, os seus arroubos, os seus surtos de independência. O Brasil, afinal, é um grande país — ainda que nós, brasileiros, não estejamos sempre à sua altura.